Por Dr. Márcio Alcântara, Brasília, 3/11/2024
Certa vez, durante minha trajetória em uma agência reguladora, me deparei com um dilema que me fez refletir profundamente sobre o papel do regulador. Era uma tarde chuvosa quando fui convocado para uma reunião de emergência. Havia uma crescente insatisfação dos consumidores com as tarifas de energia elétrica, enquanto as empresas do setor argumentavam que os custos operacionais e investimentos em infraestrutura justificavam os preços praticados. Estávamos no epicentro de um conflito de interesses que exigia uma decisão ponderada.
Ao entrar na sala de reuniões, senti o peso da responsabilidade. De um lado, consumidores clamando por justiça e acessibilidade; de outro, empresas preocupadas com a viabilidade econômica e sustentabilidade de seus serviços. A questão que pairava no ar era: devemos, como reguladores, focar exclusivamente na defesa do consumidor ou buscar um equilíbrio entre todas as partes envolvidas, incluindo empresas e governo?
A regulação surgiu historicamente como um mecanismo para corrigir falhas de mercado, proteger os consumidores de abusos de poder econômico e garantir a prestação de serviços essenciais de forma eficiente e sustentável. Segundo Baldwin, Cave e Lodge (2012), a regulação deve equilibrar interesses diversos para promover o bem-estar social. Focar apenas em um aspecto pode gerar consequências negativas a longo prazo.
Uma abordagem que privilegia unicamente os consumidores pode parecer justa à primeira vista. No entanto, Stigler (1971) argumenta que a regulação pode ser capturada por grupos de interesse, resultando em políticas que, embora bem-intencionadas, acabam prejudicando a eficiência econômica. Um exemplo prático disso foi observado no setor de energia da Califórnia nos anos 2000. A tentativa de manter tarifas artificialmente baixas levou ao subinvestimento em infraestrutura, culminando em apagões e instabilidade no fornecimento (Joskow, 2001).
Por outro lado, adotar uma postura que busca o equilíbrio entre consumidores, empresas e governo tende a promover um ambiente mais sustentável. Ogus (1994) destaca que a regulação eficaz é aquela que considera os incentivos econômicos dos agentes, alinhando-os aos objetivos sociais. No setor de telecomunicações do Reino Unido, a liberalização e a criação de um ambiente regulatório equilibrado permitiram a entrada de novos competidores, melhoria na qualidade dos serviços e redução de preços para os consumidores (Armstrong, 1997).
No setor de saneamento básico no Brasil, a Lei nº 11.445/2007 estabeleceu diretrizes nacionais que buscavam equilibrar a necessidade de universalização dos serviços com a viabilidade econômica das concessionárias. Estudos de Pinto e Simões (2014) mostram que, onde houve uma regulação equilibrada, os índices de atendimento melhoraram significativamente, beneficiando a população sem comprometer a saúde financeira das empresas.
Outro exemplo relevante é o da regulação bancária após a crise financeira de 2008. Reguladores em todo o mundo, seguindo recomendações do Comitê de Basileia, buscaram equilibrar a proteção dos consumidores e a estabilidade do sistema financeiro com a necessidade dos bancos de operar de forma rentável. Excesso de regulação poderia restringir o crédito, enquanto a falta dele poderia levar a novos riscos sistêmicos (Admati e Hellwig, 2013).
A experiência ensinou-me que envolver todas as partes interessadas no processo regulatório é essencial. Black (2008) defende que a regulação responsiva, que considera as perspectivas dos regulados e dos beneficiários, tende a ser mais eficaz. Na prática, isso significa promover consultas públicas, audiências e mecanismos de transparência que permitam um diálogo aberto e construtivo.
Ao final daquele dia desafiador, compreendi que o papel do regulador não é simples nem unilateral. Devemos atuar como mediadores imparciais, buscando soluções que equilibrem os interesses em jogo. Embora a proteção do consumidor seja fundamental, ignorar as necessidades das empresas e as diretrizes governamentais pode levar a um ambiente insustentável.
Assim, concluo que o equilíbrio entre as diversas partes afetadas é a abordagem mais eficaz na regulação de serviços públicos. Essa perspectiva não apenas assegura a proteção dos consumidores, mas também garante a sustentabilidade das empresas e o alcance dos objetivos de política pública.
Apesar da narrativa pessoal apresentada aqui ser fictícia, os exemplos e referências citados são reais e ilustram o dilema enfrentado por reguladores em todo o mundo. Este relato serve para enfatizar a complexidade do papel regulatório e a importância de uma abordagem equilibrada e informada.
Referências
- Admati, A., & Hellwig, M. (2013). The Bankers’ New Clothes: What’s Wrong with Banking and What to Do about It. Princeton University Press.
- Armstrong, M. (1997). “Competition in Telecommunications.” Oxford Review of Economic Policy, 13(1), 64-82.
- Baldwin, R., Cave, M., & Lodge, M. (2012). Understanding Regulation: Theory, Strategy, and Practice. Oxford University Press.
- Black, J. (2008). “Constructing and Contesting Legitimacy and Accountability in Polycentric Regulatory Regimes.” Regulation & Governance, 2(2), 137-164.
- Joskow, P. L. (2001). “California’s Electricity Crisis.” Oxford Review of Economic Policy, 17(3), 365-388.
- Ogus, A. (1994). Regulation: Legal Form and Economic Theory. Hart Publishing.
- Pinto, R. S., & Simões, P. (2014). “Regulação e Eficiência no Setor de Saneamento no Brasil.” Revista de Economia Contemporânea, 18(1), 42-69.
- Stigler, G. J. (1971). “The Theory of Economic Regulation.” The Bell Journal of Economics and Management Science, 2(1), 3-21.