Por Dr. Márcio Alcântara, Brasília, 11/10/2024
A atual crise da Amazonas Energia (AmE) é emblemática do desafio enfrentado por concessionárias de energia que operam em regiões remotas e socialmente vulneráveis do Brasil. A AmE, que cobre uma área vasta e de difícil acesso na região amazônica, lidou historicamente com problemas que incluem altas taxas de inadimplência, furto de energia e infraestrutura precária. Esses desafios não são novidade no setor elétrico, mas as soluções adotadas até o momento falharam em proporcionar estabilidade financeira à concessionária e um serviço de qualidade aos seus consumidores.
Em setembro de 2024, a ANEEL se viu envolvida em um processo de judicialização da transferência de controle da AmE. A Justiça Federal, determinou que a agência reguladora aprovasse em até 48 horas a venda da AmE para o grupo J&F, por meio da empresa Âmbar Energia, sob a alegação de que a ANEEL não havia cumprido as disposições da MP 1.232/24 [1]. Essa medida foi apresentada como uma tentativa de resolver os problemas financeiros da concessionária, mas traz consigo uma série de questionamentos sobre o impacto da judicialização no setor elétrico e sobre os limites da obediência da ANEEL às decisões judiciais.
Aqui, a judicialização impõe à ANEEL uma urgência que contrasta com sua função reguladora, criando uma situação em que a agência é forçada a obedecer sem poder ponderar completamente os impactos econômicos e sociais das decisões. Em seu Capítulo VII, “O Prejuízo dos Obedientes”, o livro “Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo” [2], do recém aprovado ao cargo de presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo [3], discute o paradoxo da obediência: quando se obedece cegamente a ordens superiores, muitas vezes, quem paga o preço são aqueles que menos têm capacidade de suportar. No caso da AmE, os consumidores locais e, por extensão, todos os consumidores do setor elétrico do país, são os que, em última instância, arcarão com as consequências.
A decisão da Justiça Federal, que forçou a ANEEL a aprovar a transferência da AmE à Âmbar, levanta questões fundamentais sobre o equilíbrio entre os poderes do judiciário e das agências reguladoras. Em teoria, a ANEEL, como agência reguladora do setor elétrico, deveria possuir autonomia para avaliar e aprovar mudanças no controle societário de concessionárias com base em critérios técnicos, financeiros e operacionais. No entanto, essa autonomia foi desafiada pela decisão judicial que impôs um prazo de 48 horas para a agência concluir um processo que normalmente levaria meses.
Esse cenário reflete um dos pontos centrais abordados por Edvaldo Santana em seu artigo “Pane Elétrica 2” [4], no qual ele discute o peso da interferência do judiciário e do poder executivo nas decisões do setor elétrico. A interferência judicial, embora muitas vezes necessária para corrigir falhas operacionais ou proteger os consumidores, pode resultar em decisões apressadas que ignoram o impacto econômico de longo prazo. A concessão da AmE para o grupo J&F, que já controla ativos de geração de energia, levanta preocupações de que a eficiência da operação da AmE possa ser prejudicada pela integração vertical entre geração e distribuição, conforme discutido pelo autor.
Ademais, a submissão da ANEEL à ordem judicial, sem tempo adequado para uma análise profunda dos impactos regulatórios, cria uma situação de “obediência desmedida”, o que pode prejudicar a função da agência como guardiã do equilíbrio entre empresas, governo e consumidores. A lição do livro de Belluzzo & Galípolo nos lembra que essa obediência cega pode levar a ineficiências e sobrecarga tarifária, gerando custos sociais e econômicos amplos.
Um dos principais impactos da decisão judicial e da transferência de controle da AmE é o aumento do encargo tarifário para todos os consumidores de energia no Brasil. Isso ocorre porque as concessionárias de distribuição que enfrentam dificuldades financeiras, como a AmE, acabam gerando um efeito cascata no sistema elétrico nacional. Quando uma concessionária não consegue cobrir seus custos operacionais e investimentos necessários, as tarifas acabam sendo ajustadas via encargos setoriais, como a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).
A CDE é um fundo utilizado para cobrir diversas obrigações do setor elétrico, incluindo subsídios e programas de universalização. Contudo, nos últimos anos, a CDE tem sido cada vez mais sobrecarregada por aumentos de custos de distribuidoras em dificuldades, como a AmE. Quando o grupo J&F assume a AmE sem uma estratégia clara para reduzir as perdas técnicas e não técnicas ou para melhorar a arrecadação, há o risco de que essas ineficiências continuem a ser compensadas pela CDE, transferindo o custo para os consumidores de outras regiões.
Essa situação lembra o período anterior à privatização do setor elétrico brasileiro, quando as ineficiências de uma empresa eram muitas vezes compensadas pela eficiência de outras, criando uma rede de subsídios cruzados no sistema. Naquela época, as empresas estatais de energia, como as do grupo Eletrobras, conseguiam absorver ineficiências de concessionárias menores e menos rentáveis, redistribuindo os custos entre consumidores de todo o país. Hoje, com a crescente dependência da CDE para cobrir déficits, estamos vendo uma nova versão dessa lógica de compensação, mas com um impacto direto sobre as tarifas de energia elétrica para todos os brasileiros.
A inércia da ANEEL em tomar decisões rápidas é frequentemente apontada como uma das razões que levaram à intervenção judicial no caso da AmE. O atraso na implementação das disposições da MP 1.232/24, que foi concebida para facilitar a recuperação financeira de concessionárias em dificuldades, mostra como a falta de celeridade por parte da agência reguladora pode ter consequências econômicas graves. A ANEEL iniciou consultas públicas, mas o processo de análise regulatória foi mais lento do que o esperado, permitindo que o judiciário interviesse e assumisse o controle da situação.
Esse atraso também pode ser atribuído a problemas estruturais na própria ANEEL, incluindo a falta de servidores e de diretores nomeados. A agência, responsável por regular um dos setores mais críticos da infraestrutura brasileira, enfrenta uma escassez de recursos humanos e financeiros que compromete sua capacidade de responder rapidamente a crises e de implementar mudanças regulatórias. Sem uma estrutura adequada, a ANEEL muitas vezes não consegue agir com a rapidez que o setor exige, o que abre espaço para que o judiciário ou o executivo intervenham.
Esse ponto nos leva de volta à discussão de Belluzzo & Galípolo. O livro nos lembra que a falta de ação ou a obediência cega a estruturas superiores gera prejuízos para aqueles que estão no fim da cadeia, neste caso, os consumidores de energia elétrica. A ANEEL, ao não conseguir tomar decisões rápidas e eficientes, acaba transferindo o ônus de suas falhas para a população, que paga por essas ineficiências na forma de tarifas mais altas.
Além do judiciário, outro ator com forte impacto sobre o setor elétrico é o Poder Executivo. A edição da Medida Provisória (MP) n.º 1.232/24, que visa flexibilizar regras tarifárias e operacionais para facilitar a recuperação de concessionárias de energia como a AmE, é um exemplo claro de como o governo tenta intervir em crises financeiras. No entanto, essa intervenção do Executivo nem sempre é suficiente para resolver o problema na raiz.
O furto de energia — um dos maiores problemas enfrentados pela AmE — é um exemplo das limitações da atuação estatal no setor. Nas áreas atendidas pela AmE, o furto de energia (também conhecido como “gato”) e as perdas não técnicas são alarmantes. A prática generalizada de roubo de eletricidade cria uma sobrecarga financeira sobre a concessionária, que não consegue cobrir seus custos operacionais nem gerar os investimentos necessários para a manutenção e melhoria da rede.
Essas perdas não técnicas estão profundamente enraizadas em questões socioeconômicas e na falta de fiscalização adequada. Com uma estrutura regulatória e de monitoramento insuficiente, a AmE não tem como combater esse problema de maneira eficaz, e os custos acabam sendo repassados para os consumidores. Além disso, as perdas técnicas — relacionadas à obsolescência da infraestrutura — agravam ainda mais a situação, uma vez que a concessionária é obrigada a operar em condições adversas e de difícil acesso.
Essa situação nos remete novamente ao passado, quando o setor elétrico brasileiro não era privatizado e as ineficiências de empresas como a Amazonas Energia eram compensadas pela eficiência de outras, criando uma espécie de subsídio cruzado no sistema elétrico. Hoje, essa compensação é feita por meio de fundos como a CDE, que acabam repassando esses custos para todos os consumidores de energia elétrica do país, independentemente de sua localização. Assim, a lógica de compensar ineficiências se mantém, mas agora com um impacto direto nas tarifas pagas pelos consumidores.
A obediência da ANEEL à legislação e às pressões políticas, sem uma análise mais criteriosa dos impactos de longo prazo, cria uma armadilha tarifária. Ao invés de resolver o problema estrutural da AmE — que envolve tanto a má gestão quanto a incapacidade de lidar com as especificidades regionais —, essas medidas acabam apenas “tampando o buraco” temporariamente, enquanto o custo é redistribuído para o restante do país.
Embora as intervenções no setor elétrico sejam criticadas, há justificativas para as ações tanto do Judiciário quanto do Executivo. O Poder Judiciário, ao intervir, tem em vista garantir direitos fundamentais, como o acesso à energia, e corrigir omissões da ANEEL. Já o Executivo, ao editar medidas provisórias, como a MP 1.232/24, tenta agir com rapidez para evitar um colapso no setor energético e garantir a continuidade dos serviços essenciais. Essas intervenções são vistas como mecanismos de proteção do interesse público e de correção de falhas. No entanto, é crucial que essas intervenções sejam equilibradas e transparentes, garantindo que a regulação técnica prevaleça a longo prazo, protegendo tanto os consumidores quanto a sustentabilidade do sistema.
A decisão de transferir a AmE para o grupo J&F, sem a devida análise técnica, expôs a vulnerabilidade do setor elétrico brasileiro às interferências externas. A falta de uma regulação robusta pode resultar em custos elevados para os consumidores e ineficiências que perpetuam a crise. A solução para o setor não está na obediência cega, mas no diálogo entre judiciário, executivo e agências reguladoras, com foco na eficiência e na proteção dos consumidores a longo prazo.
A decisão da justiça, em setembro de 2024, obrigou a ANEEL a aprovar a transferência de controle da Amazonas Energia para o grupo J&F, sem o devido tempo para avaliação técnica profunda e ponderação dos impactos econômicos. Isso resultou em uma situação em que o setor elétrico brasileiro, mais uma vez, se vê em uma posição de vulnerabilidade.
Em sistemas onde o poder é centralizado e os agentes são forçados a obedecer sem questionar, os maiores prejudicados são aqueles que estão na base da pirâmide. No caso do setor elétrico, os consumidores brasileiros acabam pagando o preço dessa obediência cega. Quando uma concessionária como a AmE enfrenta dificuldades financeiras e não há tempo ou recursos suficientes para uma análise regulatória adequada, os custos são redistribuídos desigualmente, impactando consumidores em outras regiões do país que nada têm a ver com a crise da Amazonas Energia.
Além disso, o fato de que a J&F, por meio da Âmbar Energia, controla tanto a geração quanto a distribuição de energia, levanta preocupações sobre a eficiência da operação. A integração vertical entre geração e distribuição pode gerar ineficiências e conflitos de interesse, prejudicando a competitividade do mercado e a qualidade do serviço.
Por fim, é crucial que a ANEEL, o judiciário e o Executivo trabalhem juntos para criar um ambiente regulatório equilibrado e sustentável, que considere tanto a necessidade de recuperação financeira das concessionárias quanto a proteção dos consumidores de tarifas excessivamente altas. A submissão sem questionamento, seja ao poder judicial ou ao executivo, não é a solução ideal para os desafios enfrentados pelo setor elétrico. É preciso encontrar um caminho que permita a recuperação das empresas em dificuldades, mas que, ao mesmo tempo, proteja os interesses de longo prazo dos consumidores e garanta a sustentabilidade do sistema na totalidade.
Referências
[1] Migalhas. Aneel tem 48h para aprovar transferência da Amazonas Energia à J&F. Migalhas, 24 set. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/415852/aneel-tem-48h-para-aprovar-transferencia-da-amazonas-energia-a-j-f. Acesso em: 9 out. 2024.
[2] BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo. 1. ed. São Paulo: Contracorrente, 2017.
[3] G1. Gabriel Galípolo é o mais jovem a assumir o BC neste século; veja trajetória. G1 – Economia, 8 out. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/10/08/gabriel-galipolo-e-o-mais-jovem-a-assumir-o-bc-neste-seculo-veja-trajetoria.ghtml. Acesso em: 9 out. 2024.
[4] SANTANA, Edvaldo. Pane elétrica 2. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/pane-eletrica-2.ghtml. Acesso em: 9 out. 2024.