Por Dr. Márcio Alcântara, Brasília, 30/9/2024
A recente regulamentação da metodologia de rateio do encargo de potência pela ANEEL (regulamentação do Decreto n.º 10.707/2021) levanta questões cruciais sobre como os custos de garantir a segurança do fornecimento de energia são distribuídos entre os consumidores. Não é uma discussão nova no setor, mas a maneira como o tema foi abordado nesta regulamentação nos oferece uma oportunidade valiosa para refletirmos sobre o equilíbrio entre eficiência econômica e justiça tarifária.
Primeiramente, é importante entender que o encargo de potência é uma espécie de “seguro” que todos os consumidores do Sistema Interligado Nacional (SIN) precisam pagar para garantir que haja capacidade suficiente para atender à demanda de energia em momentos de pico. No entanto, como esse custo é repartido entre diferentes classes de consumidores — incluindo consumidores livres, especiais e autoprodutores — sempre foi um tema delicado. Afinal, estamos falando de uma decisão que impacta diretamente as tarifas, o planejamento das empresas e, por consequência, o bolso do consumidor final.
Ao longo dos meus mais de 20 anos no setor, vi diversas tentativas de aprimorar o sistema tarifário brasileiro. Desde os tempos do racionamento de energia no início dos anos 2000, o debate sobre como alocar os custos da infraestrutura sempre esteve presente. Recordo-me de discussões semelhantes, onde os consumidores industriais questionavam o peso que arcavam para subsidiar consumidores menores. Na época, assim como agora, o desafio foi encontrar um equilíbrio que não distorcesse os incentivos para o uso eficiente da energia, nem prejudicasse a competitividade do setor produtivo.
A metodologia aprovada pela ANEEL traz uma série de inovações que visam justamente esse equilíbrio. A inclusão de consumidores livres e autoprodutores no rateio do encargo de potência é, por um lado, uma medida que parece justa, já que todos se beneficiam da segurança de abastecimento. Por outro, pode trazer debates acalorados sobre o quanto esses consumidores, que possuem maior flexibilidade e poder de negociação, deveriam realmente ser responsáveis por essa conta.
Do ponto de vista da eficiência econômica, a nova metodologia da ANEEL visa evitar o fenômeno conhecido como “carona”, onde alguns consumidores usufruem dos benefícios do sistema elétrico sem pagar sua devida parte. No entanto, também devemos perguntar: essa regulamentação incentiva o investimento em geração própria ou o consumo mais eficiente de energia? Ou estamos, inadvertidamente, promovendo uma dependência maior da infraestrutura centralizada e onerando a inovação e a competitividade?
Nos bastidores, muitas conversas revelam uma certa preocupação com os impactos dessa regulamentação sobre os novos modelos de negócios de autoprodução, como a geração distribuída. Embora não seja o foco imediato da nova regra, essas mudanças podem desencorajar a busca por alternativas mais sustentáveis e personalizadas, que, no longo prazo, ajudariam a aliviar o próprio sistema central.
A lição que fica, ao observar o desenrolar dessas regulamentações, é que a justiça tarifária é um conceito dinâmico, que deve ser constantemente revisitado. O setor elétrico brasileiro vive de ciclos de crescimento e crise, e as decisões que tomamos hoje — ainda que imperceptíveis para muitos — podem ter repercussões profundas nas próximas décadas. Assim como na vida, equilíbrio é tudo: encontrar uma forma de distribuir os custos de maneira justa, sem desestimular a eficiência e a inovação, é o verdadeiro desafio de quem regula.
Deixo aqui uma chamada para ação a todos os atores do setor elétrico: precisamos de uma discussão aberta e contínua sobre o modelo tarifário e o papel da regulação nesse processo. Qual será o próximo grande passo para garantir que, no futuro, nossos consumidores tenham não apenas energia segura, mas também acessível e sustentável?